INTRODUÇÃO
- Lucas 9:23
Há muitos textos nas escrituras que infelizmente costumam ser interpretados de forma bastante equivocada. É o caso do texto lido nesta manhã, que por gerações tem sido usado para destacar a necessidade de enfrentarmos com paciência e humildade as situações difíceis da vida, como se elas tornassem genuína a nossa profissão de fé, o nosso discipulado cristão.
A cruz de que fala Jesus, e que precisamos tomar sobre os ombros a fim de segui-Lo, tem sido normalmente identificada com alguma enfermidade, nossa ou de um ente querido, ou então com dificuldades financeiras, desemprego, problemas familiares, como o divórcio, filhos rebeldes, um marido ranzinza, ou uma mulher rabugenta. E há muitos que se consolam a si mesmos com o pensamento de que se essa é sua cruz, então que assim seja! Que seja feita a vontade de Deus!
Conquanto todo cristão às vezes tenha que renunciar a algumas coisas e passar por provações, a cruz de que fala o texto é bem diferente. A experiência a que Jesus Se refere aqui é muito mais dramática e dolorosa, e está relacionada à Sua própria experiência no Calvário, ou seja, a crucificação.
Em outras palavras, o princípio básico do discipulado cristão segundo o texto que lemos não tem que ver apenas com um sofrimento ou um problema qualquer, por mais grave que seja, mas, sim, com algo ainda mais difícil: a própria morte. Ser um verdadeiro cristão e ter fé genuína é muito mais que um sentimento, uma teoria, ou uma experiência puramente romântica. A verdadeira fé tem que ver com a morte, a morte do eu e a completa renúncia de si mesmo.
2. Contexto: Para uma melhor compreensão desta passagem, vamos tentar recompor o contexto no qual Jesus pronunciou estas palavras.
Jesus e os discípulos haviam então chegado a uma das cidades nas cercanias de Cesaréia de Felipe. Este era um lugar onde predominava a idolatria, e onde pouco ou quase nada se sabia de Cristo. E Cristo se dirigiu a este lugar justamente para ter um pouco mais de privacidade com os discípulos. A Sra. White nos diz que: “Ali os apóstolos foram afastados da dominante influência do judaísmo, sendo postos em mais íntimo contato com o culto pagão. Ao redor deles se achavam representadas formas de superstição que existiam em todo o mundo. Jesus desejava que a visão destas coisas os levasse a sentir a responsabilidade para com os pagãos” (DTN, 397).
“A maior parte dos discípulos já estava com Jesus havia cerca de três anos. Apesar disso, eles nada sabiam de Sua morte. Tivesse Jesus feito essa revelação logo no início, ao serem chamados, por exemplo, e poucos, se é que alguém teria se arriscado a seguí-Lo. Somente se já O tivessem aceitado como o Messias prometido é que poderiam entender acerca de Seu sofrimento e morte” (Só Jesus, 38).
Possivelmente esta viagem aconteceu na metade do ano 30 d.C., no momento em que Jesus se retirou do ministério público e se dedicou a instruir seus discípulos (SDABC, 418). E diante da pergunta de Cristo (Lc 9:20), Pedro tomou a frente e respondeu: “És o Cristo de Deus”. É provável que essa idéia representasse a de todo o grupo. O Mestre agora passa a ensinar sobre sua paixão, dizendo que o Filho do Homem deveria sofrer muitas coisas, que Ele seria rejeitado e finalmente morto. A frustração é latente, a fisionomia muda e um sentimento de derrota assola o grupo.
Olhem comigo o passado vejam o que diz Ellen White: “Cristo e os doze estão caminhando ao longo da costa do mar da Galiléia, em direção a cidade que esmagará todas as suas esperanças. Não ousam nenhum diálogo com Jesus, mas falavam entre si com voz baixa e triste, a respeito do que seria o futuro” (DTN, 405).
ARGUMENTAÇÃO
- O ANÚNCIO DA CRUZ (Lc 9:22 e 23)
Foi somente depois da confissão de fé de Pedro e dos demais discípulos que Cristo começou a falar: “É necessário que o Filho do Homem sofra muitas coisas, seja rejeitado pelos anciãos, pelos principais sacerdotes e pelos escribas; seja morto e, no terceiro dia, ressuscite”. E ao ouvir acerca de Sua morte eles ficaram “mudos de angustia e espanto” declara a Sra. White (DTN, 415).
Digerir esta idéia não foi algo fácil, para os discípulos o Messias viria para reinar, e não para sofrer. Eles ficaram confusos, preocupados, e é provável que no mesmo instante um sentimento de profundo temor tenha invadido o coração de cada um deles. Será que não haviam cometido um erro? Os apóstolos deixaram tudo para seguir a Jesus, e agora estavam diante da possibilidade de que tudo aquilo pudesse não dar em nada. Todos os seus sonhos com relação ao reino messiânico ruíram.
Mas Cristo não parou por aí. Além de fazer que os discípulos procurassem entender que a Sua missão era de natureza espiritual, e implicava Sua morte e ressurreição, Ele também disse que se eles realmente desejassem seguí-Lo, também precisariam passar pela mesma experiência. “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, dia a dia tome a sua cruz e siga-me”. Queridos imaginem a confusão na cabeça desses homens. Eles não apenas esperavam que Jesus em breve Se tornaria Rei, como também almejavam participar da honras desse reinado. Os irmãos sabem, eles viviam discutindo que entre eles quem seria o maior. Agora, porém Cristo fala em abnegação e morte, e o pior tipo de morte: a morte de cruz.
O fato de Jesus ter que morrer, portanto, por si só já os assustou, mas agora essa de que eles também deveriam tomar uma cruz sobre os ombros e acompanhar o Mestre em Seu sofrimento e morte... essa idéia lhes pareceu particularmente pavorosa. E não havia nenhum mal entendido. As palavras de Cristo foram bem claras. Tomar a cruz e seguir a Jesus não podia significar outra coisa para os discípulos, senão se colocar na posição de um condenado a caminho de sua execução. Não há dúvida. Jesus não estava falando de outra coisa a não ser de morte.
- A FÉ NA CRUZ
Esse momento com os discípulos significou os momentos mais importantes para o cristianismo, Cristo enunciou o princípio básico do discipulado cristão, digo melhor, o verdadeiro sentido da fé: a morte do eu, e seu total aniquilamento.
Os discípulos pensavam haver atingido o ponto mais alto de sua religião ao confessar sua fé em Jesus como Filho de Deus. Mas isso, porém era só o começo. Da mesma forma hoje, há muitos que aceitaram a Jesus como seu salvador. São crentes sinceros, mas a fé ainda é pequena e frágil, porque lhes falta entender a gravidade do seu pecado. Há outros que aceitam e entendem, mas ainda não passaram pela experiência da cruz, pela experiência da morte. Limitam-se a um conhecimento teórico. Confundem fé com mero assentimento intelectual, e com isso se enganam achando que o conhecimento que possuem é tudo o que precisam na vida cristã.
LeRoy Edwin Froom em seu livro “A vinda do Consolador (p. 172)” nos adverte: “Eu não posso continuar sendo algo, se Deus não for tudo. O eu não pode jamais expulsar o eu. Em cada coração há uma cruz e um trono. Se Jesus está no trono, o eu está na cruz”. Acontece que muitos de nós temos a Jesus somente como Salvador, e negligenciamos a Cristo como Senhor. Olhe agora para o seu coração quem está na cruz? Quem ocupa o trono da sua vida? Queridos, Jesus quer nos salvar dos pecados e não nos pecados. Alguns se esquecem que o mesmo Deus que perdoa, é também o Deus que transforma.
É possível que nesta manhã aqui nesta igreja tenha pessoas que ainda não passaram pela cruz. Pessoas que aceitaram a cristo somente como Salvador e não como Senhor. Eu quero dizer que a morte de Cristo não garante automaticamente o perdão a nenhum de nós. A menos que a aceitemos pela fé, ela não nos será de nenhum proveito. A fé que nos dá a vida é a fé que passa pela morte, morte com um símbolo de uma profunda e definitiva negação de nós mesmos.
Negar a si mesmo, portanto, significa negar ou deserdar o nosso ego imperioso e pecaminoso, renunciando a nosso suposto direito de seguir o nosso próprio caminho. Não há como entregar apenas metade do coração a Jesus. Ou Cristo ou o próprio eu ocupa o trono do nosso coração, mas Cristo só poderá ocupá-lo se o eu estiver cravado na cruz. “Quase cristãos mas não plenamente, parecem estar perto do reino do Céu, mas não podem ali entrar. Quase, mas não completamente salvos, significa estar não quase, porém completamente perdidos” (PJ, 118).
É por isso que Paulo declara: “E os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne, com as suas paixões e os seus desejos” (NVI-Gl 5:24).
- A MINHA CRUZ
A metáfora da crucificação usada por Jesus e Paulo para ilustrar a renúncia do eu é bastante adequada porque em primeiro lugar, assim como ninguém consegue crucificar a si mesmo, assim também a morte do eu não é uma conquista pessoal. Ninguém consegue, por si mesmo, se livrar de sua velha natureza e mudar a egocêntrica maneira de viver para uma vida totalmente centralizada em Cristo. Isso é obra do próprio Cristo em nós mediante o poder do Espírito Santo.
“Sozinhos, o máximo que poderíamos fazer numa cruz seria pregar os nossos pés, mas não as nossas próprias mãos. Assim também acontece na vida espiritual. Confiados em nossa própria força, até poderemos superar algumas de nossas paixões e corrigir alguns dos excessos de nossa natureza. Não poderemos, todavia, submetê-la por completo, visto não termos em nós mesmos nem poder e nem disposição suficiente para fazê-lo” (EGW, Educação, 28).
A segunda razão é porque raramente alguém morre no mesmo dia em que é crucificado. A morte por crucificação pode demorar às vezes até oito dias para ocorrer. É por isso que os romanos costumavam deixar soldados no local da execução: para que ninguém viesse durante a noite ou no dia seguinte e resgatasse o condenado ainda vivo na cruz.
O mesmo acontece na vida espiritual. A morte do eu não é instantânea, não ocorre no momento exato em que o pregamos na cruz, razão pela qual deve haver constante vigilância de nossa parte, para que satanás não resgate esse eu ainda vivo da cruz e o faça mais presente e mais forte do que nunca em nossa vida, levando-nos assim a ruína espiritual.
Se falharmos na vigilância da cruz, o inimigo vem e, sem que ninguém perceba, ele tira da cruz o velho homem ainda vivo, e o fortalece, e faz com que ele volte a dominar os pensamentos e ações, destruindo a fé e nos afastando definitivamente de Deus. Portanto, ao contrário do que alguns pensam, salvação não é algo que ocorre uma vez para sempre.
CONCLUSÃO
1. Embora a salvação seja um dom de Deus (Ef 2:8), ela o é somente para aqueles que morrem para si mesmos, e que se entregam sem reservas a Cristo, e que estejam dispostos a viver por Ele.
2. Só seremos realmente salvos se nossa fé nos levar a seguir os passos de nosso Senhor rumo ao calvário, e ali dividir com Ele o lugar da cruz, num símbolo de completa renúncia do eu. “A luta contra o próprio eu é a maior batalha que já foi ferida” (EGW, CC, 43).
3. Tão importante quanto ser crucificado é permanecer crucificado, do contrário o velho eu poderá reviver e reassumir o controle sobre nós. Não pode haver descanso, não pode haver trégua. Somente por meio do correto exercício da vontade, e muita oração, é que poderemos impedir o inimigo de raptar da cruz o nosso eu e se apossar definitivamente dele. “Resisti ao diabo” diz a Bíblia, “e ele fugirá de voz” Tg 4:7.
4. “Muitos se perderão”, diz a Sra. White, “enquanto esperam e desejam ser cristãos. Não chegam ao ponto de render a vontade a Deus. Não escolhem agora ser cristãos” (EGW, CC, 48). Por mais louco que pareça, em termos espirituais morrer significa viver. Quantos nesta manhã gostariam de repetir junto comigo as palavras do apóstolo Paulo em Gl 2: 20: “logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim”.